quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Graças a Deus, não sou alérgico a medicamentos (ou O fim do Carnaval da baiana)

Dona Ilza é baiana de escola de samba, jamais perdeu um desfile na Dantas Barreto* durante a segunda-feira de Carnaval. Sempre usa saia rodada, bata e pano de cabeça tão alvos, iguais às brancas nuvens do céu do Recife, cuidados pessoalmente por ela. Foi lavadeira para famílias durante décadas, antes de conquistar a merecida aposentadoria dos rios, dos tanques e das pias. O estilo fica completo com brincos, anéis e pulseiras de ouro, além das contas e guias dos Orixás.

Só que essa baiana de riso fácil e contagiante perdeu um pouco de brilho nos últimos dias. Após pouco mais de uma semana de luta, na noite dessa quarta-feira (25/9), o samba de Dona Ilza tocou mais triste, ou nem bateu. Ela perdeu o companheiro e amor de tantos carnavais. Silenciaram Moacir, que significa “filho do sofrimento” na língua-geral tupi-guarani; morreu o marido de bambas, versos e prosas.

Dores no peito fizeram Moacir ser levado a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) por uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Tanto a família quantos os médicos que prestaram os primeiros socorros foram bem claros: o paciente é alérgico à dipirona. Registro feito, o que foi prescrito pelo plantonista e injetado em Seu Moacir? Dipirona! Resultado: o coração do sambista bateu descompassado, quase parou “no meio da avenida”, no meio do pronto-socorro. Na sequência, internação, entubamento e, por fim, a morte.

O enredo desse samba, no final do desfile, foi transformado em nota triste e melancólica. As alas passaram, mas parece não haver mais motivo para apuração. É a dor de perder o amigo, o marido, o pai, o avô, o companheiro, o sambista... Moacir foi desfilar no Céu; Dona Ilza, queira Deus, que continue a bailar pela Terra. Já cantou Clara Guerreira os versos de Nelson Cavaquinho, “o sol há de brilhar mais uma vez”...


*Avenida Dantas Barreto, localizada no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife (PE), é a “passarela” de diversas manifestações culturais durante o Carnaval. Por ela, desfilam escolas de samba, blocos, troças, ursos, maracatus, tribos e foliões.

Francisco Danilo Shimada, após saber da morte do marido de uma querida amiga e prestes a ir ao otorrino por conta de uma infecção na garganta que já dura dez dias.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Um vira-lata e eu

Ele chegou de mansinho no último 25 de julho, um dia bastante especial para mim*. Na verdade, ele me acordou com os latidos que vinham da rua pouco depois das 6h. Despertei atordoado; chamei mainha; fui para a rua sem camisa (um feito raríssimo); e o trouxe para dentro de casa (leia-se quintal).

O objetivo era encontrar o lar (ou um novo lar) do pequeno, mas não conseguimos. Ficar aqui em casa era algo quase impossível. Há anos, eu não tinha um bicho de estimação. Olhem que já cuidei de cachorro, gato, coelho e até guaiamum, mas todos já adultos. Um filhotinho seria novidade.

Creio que não o encontramos. Ele nos encontrou... E conquistou um pai alérgico, um irmão pouco animado com a ideia, uma mãe cheia de tarefas, os alunos do reforço, os vizinhos, nossa família... Em dois meses, já não nos imaginamos sem ele, sem o novo membro de nossa (louca) família, embora ele nos “perturbe” mais do que todos os nossos alunos juntos, em mais de dez anos de aulas particulares.

Perguntado sobre os hábitos alimentares, informei que ele adorava ração e água, além de vassoura, pedra, madeira, rodo, emborrachado, torrada, laranja, meia... Por pouco, numa súbita invasão, não deu fim ao controle remoto. Com uma foto no celular e essa breve explicação, recebi a notícia: é labrador. Logo disseram: "coloque o nome dele de Marley", em menção ao livro de Jhon Grogan, que virou filme. Sei que sou jornalista, mas... ele tem jeito de menino, de Nino. No final, nesse jeito menino, ele tem mais de vira-lata do que qualquer outra coisa. E isso é lindo!

Seja bem-vindo ao Reino Unido dos Soares dos Santos Shimada. Seja bem-vindo ao seu novo lar! Como muito prazer, apresento nosso mais novo soberano: Nino, o Grande!

*Em 25 de julho de 1987, falei "papai" pela primeira vez. Em 25 de julho de 2006, num momento muito difícil, mainha escreveu na capa de minha Bíblia: "Danilo, que Deus seja louvado na sua vida". Em 25 de julho de 2012, colei grau e "me tornei" jornalista oficialmente e com diploma. Em 25 de julho de 2013, Nino me encontrou.

Francisco Danilo Shimada

terça-feira, 24 de setembro de 2013

De quando deixei de ir aos estádios de futebol*

Foto feita durante o Clássico dos Clássicos Centenário, entre Sport e Náutico, em 25 de julho de 2009.

Era uma vez...

A cada semana, bandos vestidos com mantos amarelos se dirigiam a um templo de concreto e grama. No local, chamado de Ilha do Leão, entoavam gritos de guerra em falsa honra aos deuses do ludopédio. Após o culto, embriagados, num transe assustador, com olhos vermelhos e máscaras aterrorizantes, deixavam a igreja onde, há pouco, ritualizaram. Em seguida, espalhavam-se por todos os cantos da vila do Hellcife.

Aqueles que moravam mais longe, em outras vilas, invadiam coches coletivos e aterrorizavam com gritos, olhares e gestos os demais usuários do transporte. Cores diferentes da amarela eram banidas. E não só as cores, mas qualquer um que ousasse ser diferente. Todos eram hostilizados.

Dentro de um coche, num determinado momento, quatro desses rapazes amarelos ameaçaram um jovem vermelho. A tortura psicológica durou segundos, minutos, horas... uma eternidade! Os demais coloridos, acuados num canto, pouco ou nada podiam fazer.

Um dos amarelos furtou ouro, prata e tecidos do garoto vermelho. Por negar-se a descer do coche, esse encarnado foi covardemente espancado. Nada se podia fazer. Nada... A não ser desejar que os defensores do povo, a grande guarda, aparecessem. Mas não apareceram. As pessoas rezaram, então!

Clima de medo se fez dentro do coche. O vermelho do rapaz não se encontrava mais apenas em seu manto, mas em seu rosto, em seus braços, em sua alma dilacerada... Sem forças, foi jogado para fora do transporte como um saco de lixo. O coche teve de seguir, por ordem dos covardes amarelos. O clima de tensão e perplexidade seguiu junto.

Enquanto “dividiam” o furto, o roubo, o assalto, falavam de festas e novas ações. Tentaram lembrar-se de quantas oferendas foram empurradas às redes dos deuses do ludopédio durante o culto assistido. Mas não se lembraram. O êxtase pela violência "gratuita" era a única coisa que emanava daqueles seres e permanecia em suas mentes. O próximo passo seria atacar os amantes iguais, os mais experientes...

O que valia era a vontade de humilhar o outro de maneira estúpida e covarde. E publicar isso para a sociedade através da rede de comunicação social. O clima de euforia foi cortado, repentinamente, com pedras arremessadas contra o coche. Amigos? Inimigos? A quem interessava? Nada deteve os amarelos... que voltaram tranquilamente para suas vielas.

*Foi este ano, mas não me lembro do mês, do campeonato, do placar. Fui ao estádio do Sport Club do Recife, na Ilha do Retiro, para assistir a uma partida de futebol. O jogo terminou bem tarde, depois das 23h30. Voltei para casa de ônibus e presenciei a agressão sofrida por um torcedor de um time adversário. Quatro jovens de uma torcida organizada do Sport, dois deles acompanhados das namoradas, espancaram o rapaz e o assaltaram. Foi horrível! Até hoje tento esquecer tudo o que vi. Não consigo; creio que nunca conseguirei.

Francisco Danilo Shimada