Dos textos da escritora Marina Colasanti, lidos durante minha vida escolar, Eu sei, mas não devia é aquele que deixou profundas marcas na maneira que tenho de observar o mundo. Queria poder agir mais, com a tamanha intensidade com a qual observo as pessoas e as coisas. Mas, ultimamente, tenho observado mais e agido menos, creio. Ou estou sendo duro comigo?!
Radicada no Brasil desde 1948, Marina Colasanti nasceu no norte da África, em 1937, na região que compreende a Eritréia e a Etiópia, antigas colônias italianas. Ao lado de Clarice Lispector, autora de origem ucraniana e também radicada em terras brasileiras, Marina foi quem melhor soube traduzir as visões de um “estrangeiro” sobre nosso país e em bom português.
Só que Eu sei, mas não devia vai muito além de um retrato verde e amarelo sobre a sociedade local. É uma análise de nosso planeta, das “relações” entre os seres, feito há quase duas décadas e ainda bastante atual. Marina, no texto, nos faz perceber o quanto nos acostumamos às coisas ruins do viver em busca de uma sobrevivência desgastante.
Quantas vezes ligamos para alguém, tentamos marcar um encontro e somos ignorados? Quantas vezes somos nós a ignorar um amigo, um vizinho, um estranho? Qual foi a última vez que paramos para observar o sol, a lua, o mar, a imensidão? Quando foi que passamos a aceitar qualquer imposição, qualquer número, sem o menor questionamento? Como a "coisificação" tomou conta de nossas vidas? Nesses questionamentos, lembro-me de uma antiga frase de Balzac: “a resignação é um suicídio cotidiano”.
Nos meus momentos de pouca fé e desilusão, agarro-me às palavras e aos sentidos do texto que me faz saber das coisas, mesmo sem eu dever saber. Eu sei, mas não devia me tira de meus momentos de resignação, de solidão e de descrença. Que possa fazer o mesmo por cada um que ler esse grito de alerta escrito por Marina Colasanti.
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Eu sei, mas não devia*
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
*Texto extraído do livro homônimo, publicado em 1996, pela editora Rocco.
Francisco Danilo Shimada
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