domingo, 20 de abril de 2014

A vontade de conversar está em falta – Uma introdução para “Quantas palavras você disse hoje?”

Em crônica publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 25 de novembro de 1997, o escritor Raul Drewnick tenta manter uma conversa com os leitores. Missão bastante difícil, mesmo para um texto com um título/convite para o diálogo: “quantas palavras você disse hoje?”. Se esse questionamento já “incomodava” na década de 1990, imaginem agora.

Tenho dois amigos com os quais amo sair e conversar: Marcelo e Verônica. Nosso lema, nesses encontros, é “a prioridade é de quem está presente”. Nada de celular ou qualquer eventualidade paralela. Na companhia dele, fazemos questão de deixar isso escancarado. Com ela, esse acordo é mais velado, mas mantido. Engraçado é termos saído juntos apenas uma vez, em quase sete anos de amizade. Eu sou o “amigo em comum” dos dois.

Ao me lembrar de minhas conversas com Marcelo e Verônica, paro e penso sobre as relações entre amigos e conhecidos. Chega a ser assustadora a solidão vivida por muitos atualmente, mesmo que estejam cercados de “gente”. Do recreio na escola ao happy hour num bar, pessoas das mais variadas idades buscam conectar-se com quem está distante. E tome conversar via redes sociais, microblogs e aplicativos de celular. Nada cara a cara, com quem está ao lado. Tão perto e tão longe.

Mais estranho é que, quando decidem se encontrar pessoalmente com quem estava distante, todos agem da mesma forma: um olho no movimento, outro na tela do celular (ou qualquer outro aparelho de comunicação), e as mãos ocupadas digitando mensagens. Pouco se conversa com quem se fez presente!

Dia desses fui ao Recife Antigo, para beber com um amigo que, há meses, não o via. Depois de andar bastante, revisitar museus e fazer outros programas, fomos para um bar na Rua da Moeda. Bastou sentarmos à mesa, que meu companheiro pegou o smartphone e começou a conversar com outras pessoas. Procurei deixá-lo à vontade.

Enquanto tomava uns goles de cerveja frutada, olhei ao redor. Percebi que não apenas meu amigo batia papo virtual, mas várias pessoas ao redor faziam o mesmo, até casais de namorados! Nesse momento, vi que o deslocado parecia ser eu. Dei a noite por encerrada. Pedimos a conta e tomamos nosso rumo. Foi ótimo revê-lo, mas parece que tudo funciona melhor na “segura” distância proporcionada pelos meios de comunicação. Que contraditório.

Já em casa, comecei a cantarolar os versos de Sinal fechado, composta por Paulinho da Viola, em 1968, e vencedora do V Festival da MPB, no ano seguinte. “Olá, como vai? / Eu vou indo. E você, tudo bem? / Tudo bem, eu vou indo pegar meu lugar no futuro. E você? / Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranquilo...” 



Na sequência, procurei o texto de Raul Drewnick na internet. Para minha “surpresa”, NÃO O ENCONTREI. Peguei meu livro didático de português da 8ª série, do distante ano de 1999. A crônica estava lá, preservada como as boas conversas que tenho com Marcelo, Verônica e alguns amigos queridos. Digitado e virtual, compartilho o texto com vocês e faço a mesma pergunta:

Quantas palavras você disse hoje?

A vontade de conversar anda cada vez mais em falta em São Paulo. Cansado, acossado pelas contas a pagar, mal-humorado por mil e um motivos, o paulistano hoje fala a língua travada dos monossílabos. Com os parentes, com os vizinhos, com os amigos – também cada vez mais raros –, nós nos limitamos ao sim, ao não, ao é, ao fui, ao sei, quando não recorremos aos grunhidos: ahn, hem, ohm, uhm.

Se nada mudar, logo as 150 ou 200 palavras que usamos para expressar nossas emoções e nossos sentimentos, nossas frustações e nossas alegrias, nosso carinho e nosso rancor, nossos sonhos e nossas desilusões, nosso afetos e nosso desamor estarão reduzidas a 40 ou, quem sabe, 50.

Ninguém precisa falar conosco, para nos definir. Basta olhar para nós. Somos o que o nosso rosto não esconde e nosso olhar inamistoso revela: magoados, sofridos, desencantados. Sorrir para quem, se aquele para quem sorrimos pode nos cercar na próxima esquina e nos apontar um revólver para roubar os minguados reais de nossa carteira? Falar com quem, se ninguém quer falar com ninguém? Somos robôs programados para o essencial e já faz muito tempo que o essencial não inclui a convivência.

Se bater um papo é difícil, manter um diálogo é uma impossibilidade. Já reparou nas caras feias que logo se armam quando numa reunião alguém comete o pecado mortal de tentar pôr em circulação um assunto que não seja o futebol, a vida íntima dos astros do cinema e da TV ou a nova maravilha em dietas ou regimes?

Experimente citar, ainda que bem de leve, aquele programa que você às vezes vê na TV Cultura ou manifeste sua indignação com a Globo por ela ter tirado do ar os Concertos Internacionais.

Ninguém lhe dirá nada, porque falar cansa. Mas você lerá em todos os rostos algo mais ou menos assim: – Ah, qual é a desse cara? Se a dona da casa não enfiar logo um sanduíche na boca desse cretino, já já ele vai vir com aquela caretice de literatura engajada e imortalidade da alma.

Sem ter com quem conversar, às vezes um dos nossos se põe a falar sozinho por aí. Você já viu alguns deles pela cidade – um na Avenida Paulista, um no Largo do Arouche, um na Avenida São João. Alguns, mais modestos, andam pelos bairros da periferia. E falam, falam, falam sem parar. Falam para os carros, para os passarinhos, para as árvores, para os postes. Não falam conosco. Já tentaram, em outro tempo, e enlouqueceram de tanto tentar.

Ontem, vi um desses desvairados. Entrei numa dessas agências bancárias em que não há funcionários, só máquinas, e o vi conversando com uma delas.

A máquina pedia: – Digite sua senha.

Ele digitava e dizia: – OK.

A máquina sugeria: – Digite o valor dos cheques depositados.

Ele digitava e agradecia: – Obrigado.

Aí ele errava, e a máquina repetia: – Digite o valor dos cheques depositados.

Ele digitava de novo e se eximia: – Desculpe, hoje eu estou atrapalhado.

A conversa continuou, enquanto eu, na minha máquina, muda, sacava um dinheirinho. Enfiei as notas no bolso, saí e fiquei um minuto ou dois lendo as manchetes numa banca. Quando me dispus a retomar meu caminho, quem foi que se aproximou de mim? O homem, aquele. Olhou-me com simpatia e me perguntou: – Tudo bem?

Entrei em pânico. Ele, então, levantou a mão e me cumprimentou: – Até logo e boa sorte.

Enquanto eu, estupefato, não sabia se respondia ou não, ele atravessou a rua e se foi. Era um louco, só podia ser. Falava e, além de falar, sorria.
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“Esteja presente, como um presente, em minha vida.” Autor desconhecido

Introdução: Francisco Danilo Shimada
Texto principal: Raul Drewnick

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