sábado, 26 de abril de 2014

Baby Consuelo do Brasil, in name of the Jesus, glória a Deus nas alturas, dentro e fora da matrix, que seja telúrica.

“Tudo azul. Adão e Eva e o paraíso. Tudo azul. Sem pecado e sem juízo.” 

Tinha uns oito anos, um garoto cheio de dúvidas, longe das raízes pernambucanas, vivendo um último e (in)tenso ano no Ceará. Era 1996. Das lembranças daquela época, sei que, com certeza, o programa de domingo ficava entre ir à Praia do Futuro, durante o dia, ou ao Shopping Iguatemi, à noite.

Quando a escolha era o shopping, depois do passeio e do lanche na McDonald’s, voltávamos em silêncio no carro. Nossa família – de pai, mãe e dois filhos – pouco conversava coletivamente. O único som vinha do rádio, sintonizado na mesma emissora nos três anos em que moramos em Fortaleza. Não me lembro do nome da rádio, mas equivale a Nova Brasil ou Tribuna, aqui em Pernambuco.

A programação era sempre a mesma. Num determinado momento, tocava Sem pecado, sem juízo, que, para mim, sempre será Tudo azul. Que voz era aquela? Eu me deitava no banco de trás – não havia a preocupação com o uso do cinto de segurança – enquanto meu irmão ficava quieto no canto dele. Eu surtava internamente com aquela história de “Adão e Eva sem pecado e sem juízo”. Era possível não ter pecado e não ter juízo? Quem profetizava aquilo? Era Baby; ora Consuelo, ora do Brasil. Que também fosse minha!

O movimento do carro ao som de Baby Consuelo do Brasil, entre a Antônio Sales e a João Cordeiro, já perto do prédio onde morávamos, era ainda mais inebriante. Ouvir Baby me fez e me faz sentir assim! Nesse transe, o fim da música indicava o começo da semana.


Não sei quando descobri o nome da mulher que cantava a história bíblica do primeiro casal. Não foi na homenagem do Dia do Índio, como já contei aqui. Não me lembro de quando foi. É tudo muito “matrix”, como diria a própria Baby. Uma coisa sem explicações ou memórias. Aconteceu num momento em que mente e corpo não estavam juntos. Só pode!

Depois de Tudo azul e Todo dia era Dia de Índio, veio Menino do Rio. Nossa! O que era aquela voz cantando “calor que provoca arrepio”? Vim entender o significado de tudo bem depois, física e mentalmente. Salve, salve, Caetano! Salve o boy magia que encantou a mente por trás dos caracóis dos cabelos baianos.

Das histórias com Menino do Rio – que sempre me levam à Copacabana boy, de Rita Lee – lembro-me de ter pedido para meu editor não colocar a expressão “meninos do Rio” em uma matéria sobre jogadores cariocas. Em 2013, com 27 anos, eu fui “careta”; isso nos rendeu uma boa conversa; ele aceitou meu pedido. Dias depois, vi uma manchete com “meninos do Rio” em um jornal. Quase morri (de rir). Acho que Christian nunca viu essa matéria. Assim espero!

Em 2012, quando Baby esteve no Recife, eu estava em Cuiabá. Como pensei em desistir da viagem para ver o show (e fazer outras coisas). Mãe de volta aos palcos, in name of the Jesus, e graças ao filho Pedro Baby. Mas foi graças a essa maravilhosa viagem que eu pude, no ano seguinte, discutir a respeito do título da matéria sobre os “meninos do Rio” com meu editor. Tudo tem um propósito.

Vez ou outra, eu me pego cantarolando canções únicas, declarações aos prazeres e às dores da vida. Músicas que parecem ter sido compostas exclusivamente para Baby louvar: A menina dança, Telúrica, Seus olhos, Planeta Vênus, Um auê com você, Barrados na Disneylândia...

Agora aguardo a volta de Baby do Brasil a Pernambuco. A voz que embalou sonhos dos mais alucinantes aos mais “proibidos”. A voz com mais de 60 anos e um timbre doce, cheio de amor e firmeza. A voz mais incrível entre as cantoras brasileiras “atuais”, sem dúvida. Aquilo e aquela que o Tropicalismo e os Novos baianos nos deram, nada nos tira. Deus, em todas as suas formas, seja louvado. A “popstora” e apóstola Baby também diz amém, “sem pecado” e com o melhor juízo.


Francisco Danilo Shimada

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Eu, outras poesias e algumas histórias – 130 anos de Augusto dos Anjos*

*Resumo de um dia literário “acompanhado” por Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira e Florbela Espanca, meus escritores centenários e audaciosos. O título prioriza o pré-modernista Augusto dos Anjos porque este texto foi escrito no dia do 130º aniversário de nascimento do autor, em 19 de abril de 2014.

Eu e outras poesias

Uma amiga tem a primeira edição do livro Eu e outras poesias, do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Sempre foi meu sonho de consumo, mas ele é dela, fruto de uma aventura arriscada. A obra foi furtada de uma biblioteca pública há algumas décadas. Nesses momentos, lembro-me de minha escritora predileta, Clarice Lispector, em um dos trechos do conto Cem anos de perdão: “quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender”.

Entre os escritores brasileiros, Augusto é o meu poeta favorito, um dos mais extraordinários que o país já teve. Nasceu em Cruz do Espírito Santo (PB) há exatos 130 anos, em 20 de abril de 1884. Pena que morreu tão jovem, aos 30, em Imperatriz (MG), vítima das complicações de uma pneumonia. De única obra, teve (apenas) Eu publicada em 1912. Já in memoriam, o amigo Órris Soares reuniu textos inéditos do autor e lançou, pela Imprensa Oficial do Estado da Paraíba, em 1920, Eu e outras poesias.

Das história sobre o livro, sempre me vem a contada por um dos meus professores de literatura a respeito do título da coletânea. “Certa vez, Augusto dos Anjos passava por uma das pontes do Recife. Sentiu-se mal, começou a tossir e cuspiu sangue. Assustadas, as pessoas se afastaram dele. Com um dos dedos, ele tocou o sangue no chão e escreveu a palavra EU. Ele era aquilo, um doente, para as pessoas. Tanto que a capa do primeiro livro tem EU escrito em fundo branco com letras vermelhas.” Verídica ou não, essa história permanece comigo até hoje.


Na memória dos 130 anos, compartilho os Versos íntimos do grande poeta. Versos sinceros, únicos e corajosos em qualquer contexto histórico. É uma obra atemporal e desafiadora.

Versos Íntimos – Augusto dos Anjos

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!
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Algumas histórias¹ – O poeta pernambucano Manuel Bandeira, dois anos mais novo do que Augusto dos Anjos, nasceu no Recife (PE), em 19 de abril de 1886. A exemplo do escritor paraibano, pouco se leu sobre as obra desse importante escritor nos meios de comunicação no dia de seu 128º aniversário. Pode não ser uma data redonda, como os jornalistas costumam tratar datas especiais, mas Bandeira sempre deve ser lembrado. Que em 2016, pelo menos, o trabalho do “amigo do rei e possível morador de Pasárgada” seja resgatado.

Dos poemas dele, destaco Madrigal Melancólico, publicado pela Nova Aguilar, em 1993, no livro Poesia Completa e Prosa. Na primeira vez, ouvi Antonio Abujamra recitar esse poema no programa de tevê Provocações. Uma pena o vídeo não estar mais disponível. Depois, encontrei o livro. Madrigal... é um triste e melancólico poema sobre a percepção de como a beleza é fugaz. Um texto belo sobre a vida!

Madrigal Melancólico – Manuel Bandeira

O que adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
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Algumas histórias² – Neste final de semana literário, a boa notícia veio com a divulgação do trailer do filme Florbela (Portugal, 2012, 119min), do diretor Vicente de Alves Ó. Distribuído pela Imovision, o longa deverá ser lançado no Brasil em 1º de maio e conta a história da maior poetisa portuguesa: Florbela Espanca (Dalila Carmo).

O filme se passa em Portugal, na década de 1920, num turbulento período político e de transição da monarquia portuguesa para a república. A arrebatadora vida de uma mulher incompreendida, cansada de um casamento tradicional, apaixonada pelo próprio irmão e em busca da salvação através das palavras se dá nesse contexto.


Extraordinária, feminista, “erotizada” e panteísta. As características de Florbela Espanca são traduzidas nas obras da autora; a tragédia parece permear toda a trajetória de vida dessa mulher. Nascida em 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa (Reino de Portugal), suicidou-se 36 anos depois, no dia do próprio aniversário, em Matosinho (Portugal). Acredito que, ao contrário do tratamento dado a Augusto dos Anjos, no Brasil, Florbela terá melhor sorte em terras lusitanas, nesta data fechada.

Do filme, retiro uma marcante frase: “pior do que não ter aquilo que se quer é não fazer nada quando se tem.” Da obra dessa mulher, 120 anos após o seu nascimento, comemorados em 2014, compartilho o soneto Fanatismo, do livro Soror Saudade, publicado pela Tipografia A Americana, em 1923. O poema foi musicado pelo cantor brasileiro Fagner.

Fanatismo – Florbela Espanca 

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."


Augusto dos Anjos – 130 anos
Manuel Bandeira – 128 anos
Florbela Espanca – 120 anos

Francisco Danilo Shimada

domingo, 20 de abril de 2014

A vontade de conversar está em falta – Uma introdução para “Quantas palavras você disse hoje?”

Em crônica publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 25 de novembro de 1997, o escritor Raul Drewnick tenta manter uma conversa com os leitores. Missão bastante difícil, mesmo para um texto com um título/convite para o diálogo: “quantas palavras você disse hoje?”. Se esse questionamento já “incomodava” na década de 1990, imaginem agora.

Tenho dois amigos com os quais amo sair e conversar: Marcelo e Verônica. Nosso lema, nesses encontros, é “a prioridade é de quem está presente”. Nada de celular ou qualquer eventualidade paralela. Na companhia dele, fazemos questão de deixar isso escancarado. Com ela, esse acordo é mais velado, mas mantido. Engraçado é termos saído juntos apenas uma vez, em quase sete anos de amizade. Eu sou o “amigo em comum” dos dois.

Ao me lembrar de minhas conversas com Marcelo e Verônica, paro e penso sobre as relações entre amigos e conhecidos. Chega a ser assustadora a solidão vivida por muitos atualmente, mesmo que estejam cercados de “gente”. Do recreio na escola ao happy hour num bar, pessoas das mais variadas idades buscam conectar-se com quem está distante. E tome conversar via redes sociais, microblogs e aplicativos de celular. Nada cara a cara, com quem está ao lado. Tão perto e tão longe.

Mais estranho é que, quando decidem se encontrar pessoalmente com quem estava distante, todos agem da mesma forma: um olho no movimento, outro na tela do celular (ou qualquer outro aparelho de comunicação), e as mãos ocupadas digitando mensagens. Pouco se conversa com quem se fez presente!

Dia desses fui ao Recife Antigo, para beber com um amigo que, há meses, não o via. Depois de andar bastante, revisitar museus e fazer outros programas, fomos para um bar na Rua da Moeda. Bastou sentarmos à mesa, que meu companheiro pegou o smartphone e começou a conversar com outras pessoas. Procurei deixá-lo à vontade.

Enquanto tomava uns goles de cerveja frutada, olhei ao redor. Percebi que não apenas meu amigo batia papo virtual, mas várias pessoas ao redor faziam o mesmo, até casais de namorados! Nesse momento, vi que o deslocado parecia ser eu. Dei a noite por encerrada. Pedimos a conta e tomamos nosso rumo. Foi ótimo revê-lo, mas parece que tudo funciona melhor na “segura” distância proporcionada pelos meios de comunicação. Que contraditório.

Já em casa, comecei a cantarolar os versos de Sinal fechado, composta por Paulinho da Viola, em 1968, e vencedora do V Festival da MPB, no ano seguinte. “Olá, como vai? / Eu vou indo. E você, tudo bem? / Tudo bem, eu vou indo pegar meu lugar no futuro. E você? / Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranquilo...” 



Na sequência, procurei o texto de Raul Drewnick na internet. Para minha “surpresa”, NÃO O ENCONTREI. Peguei meu livro didático de português da 8ª série, do distante ano de 1999. A crônica estava lá, preservada como as boas conversas que tenho com Marcelo, Verônica e alguns amigos queridos. Digitado e virtual, compartilho o texto com vocês e faço a mesma pergunta:

Quantas palavras você disse hoje?

A vontade de conversar anda cada vez mais em falta em São Paulo. Cansado, acossado pelas contas a pagar, mal-humorado por mil e um motivos, o paulistano hoje fala a língua travada dos monossílabos. Com os parentes, com os vizinhos, com os amigos – também cada vez mais raros –, nós nos limitamos ao sim, ao não, ao é, ao fui, ao sei, quando não recorremos aos grunhidos: ahn, hem, ohm, uhm.

Se nada mudar, logo as 150 ou 200 palavras que usamos para expressar nossas emoções e nossos sentimentos, nossas frustações e nossas alegrias, nosso carinho e nosso rancor, nossos sonhos e nossas desilusões, nosso afetos e nosso desamor estarão reduzidas a 40 ou, quem sabe, 50.

Ninguém precisa falar conosco, para nos definir. Basta olhar para nós. Somos o que o nosso rosto não esconde e nosso olhar inamistoso revela: magoados, sofridos, desencantados. Sorrir para quem, se aquele para quem sorrimos pode nos cercar na próxima esquina e nos apontar um revólver para roubar os minguados reais de nossa carteira? Falar com quem, se ninguém quer falar com ninguém? Somos robôs programados para o essencial e já faz muito tempo que o essencial não inclui a convivência.

Se bater um papo é difícil, manter um diálogo é uma impossibilidade. Já reparou nas caras feias que logo se armam quando numa reunião alguém comete o pecado mortal de tentar pôr em circulação um assunto que não seja o futebol, a vida íntima dos astros do cinema e da TV ou a nova maravilha em dietas ou regimes?

Experimente citar, ainda que bem de leve, aquele programa que você às vezes vê na TV Cultura ou manifeste sua indignação com a Globo por ela ter tirado do ar os Concertos Internacionais.

Ninguém lhe dirá nada, porque falar cansa. Mas você lerá em todos os rostos algo mais ou menos assim: – Ah, qual é a desse cara? Se a dona da casa não enfiar logo um sanduíche na boca desse cretino, já já ele vai vir com aquela caretice de literatura engajada e imortalidade da alma.

Sem ter com quem conversar, às vezes um dos nossos se põe a falar sozinho por aí. Você já viu alguns deles pela cidade – um na Avenida Paulista, um no Largo do Arouche, um na Avenida São João. Alguns, mais modestos, andam pelos bairros da periferia. E falam, falam, falam sem parar. Falam para os carros, para os passarinhos, para as árvores, para os postes. Não falam conosco. Já tentaram, em outro tempo, e enlouqueceram de tanto tentar.

Ontem, vi um desses desvairados. Entrei numa dessas agências bancárias em que não há funcionários, só máquinas, e o vi conversando com uma delas.

A máquina pedia: – Digite sua senha.

Ele digitava e dizia: – OK.

A máquina sugeria: – Digite o valor dos cheques depositados.

Ele digitava e agradecia: – Obrigado.

Aí ele errava, e a máquina repetia: – Digite o valor dos cheques depositados.

Ele digitava de novo e se eximia: – Desculpe, hoje eu estou atrapalhado.

A conversa continuou, enquanto eu, na minha máquina, muda, sacava um dinheirinho. Enfiei as notas no bolso, saí e fiquei um minuto ou dois lendo as manchetes numa banca. Quando me dispus a retomar meu caminho, quem foi que se aproximou de mim? O homem, aquele. Olhou-me com simpatia e me perguntou: – Tudo bem?

Entrei em pânico. Ele, então, levantou a mão e me cumprimentou: – Até logo e boa sorte.

Enquanto eu, estupefato, não sabia se respondia ou não, ele atravessou a rua e se foi. Era um louco, só podia ser. Falava e, além de falar, sorria.
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“Esteja presente, como um presente, em minha vida.” Autor desconhecido

Introdução: Francisco Danilo Shimada
Texto principal: Raul Drewnick

sábado, 19 de abril de 2014

Todo dia era dia de índio...

Lembro-me como se fosse hoje, agora, neste exato momento de madrugada insone. Há quase 20 anos, a coordenadora pedagógica Rita de Cássia, responsável pelas turmas / tribos da 4ª série do Colégio Cearense Sagrado Coração – Marista, entrou na sala de aula com um violão em uma das mãos. Na outra, segurava cópias da música Todo dia era dia de índio, composta por Jorge Ben (Jor), e imortalizada na voz de Baby Consuelo (do Brasil). Ela não veio brincar de índio, igual a Xuxa; ou trazer os curumins do arco-íris de Mara Maravilha. Era Dia do Índio!

As cópias foram distribuídas para os alunos pelos três representantes de turma (um religioso, um esportivo e um cultural). Eram muitos estudantes, muitas tarefas, todas bem dividas. Traços de uma organização indígena numa instituição católica, talvez. Fazia um bonito sol lá fora, os galhos das árvores de olho-de-pombo balançavam com a brisa da tarde. Mas não havia índios, a natureza em toda sua exuberância, parecia um pouco morta.

A coordenadora falou sobre a importância e a situação dos nossos ancestrais indígenas. Num apelo emocionado, ela pediu para nos lembrarmos do Dia do Índio muito além da data comemorativa.  Após um breve debate, começou a dedilhar o violão e cantou. Não há o registro, mas temos Baby.


Jorge Ben foi muito além da homenagem aos povos indígenas na música. A canção é, na verdade, um pedido de socorro. Dos mais de três milhões de índios – que habitavam Pindorama, a Ilha de Vera Cruz, a Terra de Santa Cruz, o Brasil – restam alguns milhares. Das centenas de etnias existentes, em 1500, poucas têm registros, inúmeras “sumiram”. Sobre os idiomas, muito foi condensado no tupi-guarani; outra grande parte foi esquecida, dizimada.

De lá para cá, em várias escolas, já me pintei como os índios, assisti a apresentações, dancei, doei alimentos, comprei artefatos, muitas vezes, sempre por conta dessa data. Numa oportunidade única, a mais intrigante, vi índios no Zoológico de Dois Irmãos, no Recife (PE), fazerem a dança da chuva. O céu escureceu. Foi lindo, único, encantador! Choveu! Um pouco, mas choveu. Tupã se fez presente.

A história por trás da data – O 19 de abril é dedicado aos índios, em todo território americano, por conta da participação de diversos líderes indígenas no I Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México, em 1940. Após o receio de participar do evento, nos primeiros dias, por conta das perseguições sofridas, os representantes das tribos foram ao encontro dos líderes políticos discutir ações para a preservação da memória dos índios. No Brasil, a data passou a ser comemorada em 1943, através do decreto lei de número 5.540, assinado pelo presidente Getúlio Vargas.

Francisco Danilo Shimada

sábado, 12 de abril de 2014

Eu sei que a gente se acostuma...

Dos textos da escritora Marina Colasanti, lidos durante minha vida escolar, Eu sei, mas não devia é aquele que deixou profundas marcas na maneira que tenho de observar o mundo. Queria poder agir mais, com a tamanha intensidade com a qual observo as pessoas e as coisas. Mas, ultimamente, tenho observado mais e agido menos, creio. Ou estou sendo duro comigo?!

Radicada no Brasil desde 1948, Marina Colasanti nasceu no norte da África, em 1937, na região que compreende a Eritréia e a Etiópia, antigas colônias italianas. Ao lado de Clarice Lispector, autora de origem ucraniana e também radicada em terras brasileiras, Marina foi quem melhor soube traduzir as visões de um “estrangeiro” sobre nosso país e em bom português.

Só que Eu sei, mas não devia vai muito além de um retrato verde e amarelo sobre a sociedade local. É uma análise de nosso planeta, das “relações” entre os seres, feito há quase duas décadas e ainda bastante atual. Marina, no texto, nos faz perceber o quanto nos acostumamos às coisas ruins do viver em busca de uma sobrevivência desgastante.

Quantas vezes ligamos para alguém, tentamos marcar um encontro e somos ignorados? Quantas vezes somos nós a ignorar um amigo, um vizinho, um estranho? Qual foi a última vez que paramos para observar o sol, a lua, o mar, a imensidão? Quando foi que passamos a aceitar qualquer imposição, qualquer número, sem o menor questionamento? Como a "coisificação" tomou conta de nossas vidas? Nesses questionamentos, lembro-me de uma antiga frase de Balzac: “a resignação é um suicídio cotidiano”.

Nos meus momentos de pouca fé e desilusão, agarro-me às palavras e aos sentidos do texto que me faz saber das coisas, mesmo sem eu dever saber. Eu sei, mas não devia me tira de meus momentos de resignação, de solidão e de descrença. Que possa fazer o mesmo por cada um que ler esse grito de alerta escrito por Marina Colasanti.
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Eu sei, mas não devia*

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

*Texto extraído do livro homônimo, publicado em 1996, pela editora Rocco.

Francisco Danilo Shimada