Eu e outras poesias
Uma amiga tem a primeira edição do livro Eu e outras poesias, do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Sempre foi meu sonho de consumo, mas ele é dela, fruto de uma aventura arriscada. A obra foi furtada de uma biblioteca pública há algumas décadas. Nesses momentos, lembro-me de minha escritora predileta, Clarice Lispector, em um dos trechos do conto Cem anos de perdão: “quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender”.
Entre os escritores brasileiros, Augusto é o meu poeta favorito, um dos mais extraordinários que o país já teve. Nasceu em Cruz do Espírito Santo (PB) há exatos 130 anos, em 20 de abril de 1884. Pena que morreu tão jovem, aos 30, em Imperatriz (MG), vítima das complicações de uma pneumonia. De única obra, teve (apenas) Eu publicada em 1912. Já in memoriam, o amigo Órris Soares reuniu textos inéditos do autor e lançou, pela Imprensa Oficial do Estado da Paraíba, em 1920, Eu e outras poesias.
Das história sobre o livro, sempre me vem a contada por um dos meus professores de literatura a respeito do título da coletânea. “Certa vez, Augusto dos Anjos passava por uma das pontes do Recife. Sentiu-se mal, começou a tossir e cuspiu sangue. Assustadas, as pessoas se afastaram dele. Com um dos dedos, ele tocou o sangue no chão e escreveu a palavra EU. Ele era aquilo, um doente, para as pessoas. Tanto que a capa do primeiro livro tem EU escrito em fundo branco com letras vermelhas.” Verídica ou não, essa história permanece comigo até hoje.
Na memória dos 130 anos, compartilho os Versos íntimos do grande poeta. Versos sinceros, únicos e corajosos em qualquer contexto histórico. É uma obra atemporal e desafiadora.
Versos Íntimos – Augusto dos Anjos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera
Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!
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Algumas histórias¹ – O poeta pernambucano Manuel Bandeira, dois anos mais novo do que Augusto dos Anjos, nasceu no Recife (PE), em 19 de abril de 1886. A exemplo do escritor paraibano, pouco se leu sobre as obra desse importante escritor nos meios de comunicação no dia de seu 128º aniversário. Pode não ser uma data redonda, como os jornalistas costumam tratar datas especiais, mas Bandeira sempre deve ser lembrado. Que em 2016, pelo menos, o trabalho do “amigo do rei e possível morador de Pasárgada” seja resgatado.
Dos poemas dele, destaco Madrigal Melancólico, publicado pela Nova Aguilar, em 1993, no livro Poesia Completa e Prosa. Na primeira vez, ouvi Antonio Abujamra recitar esse poema no programa de tevê Provocações. Uma pena o vídeo não estar mais disponível. Depois, encontrei o livro. Madrigal... é um triste e melancólico poema sobre a percepção de como a beleza é fugaz. Um texto belo sobre a vida!
Madrigal Melancólico – Manuel Bandeira
O que adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
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Algumas histórias² – Neste final de semana literário, a boa notícia veio com a divulgação do trailer do filme Florbela (Portugal, 2012, 119min), do diretor Vicente de Alves Ó. Distribuído pela Imovision, o longa deverá ser lançado no Brasil em 1º de maio e conta a história da maior poetisa portuguesa: Florbela Espanca (Dalila Carmo).
O filme se passa em Portugal, na década de 1920, num turbulento período político e de transição da monarquia portuguesa para a república. A arrebatadora vida de uma mulher incompreendida, cansada de um casamento tradicional, apaixonada pelo próprio irmão e em busca da salvação através das palavras se dá nesse contexto.
Extraordinária, feminista, “erotizada” e panteísta. As características de Florbela Espanca são traduzidas nas obras da autora; a tragédia parece permear toda a trajetória de vida dessa mulher. Nascida em 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa (Reino de Portugal), suicidou-se 36 anos depois, no dia do próprio aniversário, em Matosinho (Portugal). Acredito que, ao contrário do tratamento dado a Augusto dos Anjos, no Brasil, Florbela terá melhor sorte em terras lusitanas, nesta data fechada.
Do filme, retiro uma marcante frase: “pior do que não ter aquilo que se quer é não fazer nada quando se tem.” Da obra dessa mulher, 120 anos após o seu nascimento, comemorados em 2014, compartilho o soneto Fanatismo, do livro Soror Saudade, publicado pela Tipografia A Americana, em 1923. O poema foi musicado pelo cantor brasileiro Fagner.
Fanatismo – Florbela Espanca
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."
Augusto dos Anjos – 130 anos
Manuel Bandeira – 128 anos
Florbela Espanca – 120 anos
Francisco Danilo Shimada
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Certa feita, estava eu assistindo a uma palestra quando o intermediador daquela noite declamou o poema "Vandalismo" de Augusto dos Anjos. Apodero-me da mesma licença poética, Danilo, da passagem narrada em seu texsto sobre a origem do título da obra do autor para lançar, apenas, uma pequena consideração daquele que declamou a poesia "Vandalismo", que afirmara noutras palavras: "Esta poesia versa implicitamente sobre o tema reencarnação." Talvez por coincidência, Augusto dos Anjos seja um dos autores da obra Parnaso de Além-Túmulo em que o médium Chico Xavier teve a incumbência de psicografá-la, esta que foi a sua primeira obra psicografada. Vale a pena ouvir essa poesia de Augusto: https://www.youtube.com/watch?v=Y4qY2R7U-IM
ResponderExcluirLeonardo Gibson
Leonardo, meu amigo, já disse também o quanto é maravilhoso poder ler seus textos, seus comentários. Muito obrigado pelo carinho, pela leitura e pela dica sobre Augusto dos Anjos e Chico Xavier. Um tesouro espiritual e literário. Muito obrigado, meu amigo. Abraços!
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